v.19, n.3, jul.-set. 2012, p.793-813
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Eugenia ‘negativa’, psiquiatria e catolicismo
Eugenia ‘negativa’,
psiquiatria e catolicismo:
embates em torno da
esterilização eugênica
no Brasil
‘Negative’ eugenics,
psychiatry, and Catholicism:
clashes over eugenic
sterilization in Brazil
Robert Wegner
Pesquisador e professor do Programa de Pós-graduação
em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Av. Brasil, 4306/4
o
andar
21040-361 – Rio de Janeiro – Brasil
robertwegnercoc@gmail.com
Vanderlei Sebastião de Souza
Pesquisador de pós-doutorado pelo CNPq na
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fiocruz.
Av. Leopoldo Bulhões, 1480
21041-210 – Rio de Janeiro – Brasil
vanderleidesouza@yahoo.com.br
Recebido para publicação em maio 2012.
Aprovado para publicação em novembro de 2012.
WEGNER, Robert; SEBASTIÃO DE
SOUZA, Vanderlei. Eugenia ‘negativa’,
psiquiatria e catolicismo: embates em
torno da esterilização eugênica no
Brasil. História, Ciências, Saúde –
Manguinhos, Rio de Janeiro. Disponível
em: http://www.scielo.br/hcsm.
Resumo
Analisa o diálogo do eugenista Renato
Kehl com um grupo de psiquiatras
brasileiros que, no início da década de
1930, aproximaram-se da chamada
eugenia negativa. Entusiasmados com
as pesquisas e a aplicação de medidas
eugênicas em países como os EUA e a
Alemanha, autores como Ernani Lopes,
Ignácio da Cunha Lopes, Alberto Farani
e Antonio Carlos Pacheco e Silva
elegeram a religião católica como
empecilho para que o Brasil pudesse
seguir caminho semelhante,
especialmente quanto à resistência à
implantação da esterilização dos ditos
‘degenerados’ que passara a vigorar na
Alemanha em 1934. O artigo mapeia as
diferentes estratégias propostas pelos
autores para dialogar com a Igreja
católica.
Palavras-chave: história da eugenia;
história da psiquiatria; catolicismo;
degeneração e esterilização; Renato
Kehl (1889-1974).
Abstract
The article analyzes the dialogue between
eugenicist Renato Kehl and a group of
Brazilian psychiatrists who turned their
interest to so-called negative eugenics in the
early 1930s. Enthused about research into
eugenics and the application of eugenic
methods in countries such as the United
States and Germany, authors like Ernani
Lopes, Ignácio da Cunha Lopes, Alberto
Farani, and Antonio Carlos Pacheco e Silva
blamed Catholicism for impeding Brazil
from moving in a similar direction,
especially the church’s resistance to the
sterilization of ‘degenerates’, which entered
into effect in Germany in 1934. The article
charts the various strategies these authors
proposed for engaging in dialogue with the
Catholic Church.
Keywords: history of eugenics; history of
psychiatry; Catholicism; degeneration and
sterilization; Renato Kehl (1889-1974).
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História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro
Robert Wegner, Vanderlei Sebastião de Souza
E
ste trabalho visa analisar o projeto eugênico defendido pelo médico e eugenista Renato
Kehl (1889-1974) a partir do final dos anos 1920. Pretendemos discutir a trajetória
desse autor e sua aproximação com a chamada eugenia negativa, especialmente aquela
que se vinha desenvolvendo na Alemanha e nos EUA, e o conduziria ao racismo científico
e a um determinismo biológico radical. Como o principal propagandista da eugenia no
Brasil, Renato Kehl atuou não só na divulgação das ideias eugênicas como também na
formulação de projetos políticos voltados para a seleção racial. Partindo de Renato Kehl,
analisamos também como outros cientistas, dedicados à psiquiatria, trilharam percurso
semelhante em direção à eugenia negativa, sobretudo no que dizia respeito à esterilização
eugênica. Para isso, acompanhamos o diálogo mantido entre Renato Kehl e o psiquiatra
Ernani Lopes (1885-?) na Liga Brasileira de Hygiene Mental, bem como a atuação de
psiquiatras como Ignácio da Cunha Lopes (1891-?), Alberto Farani (1883-1937) e Antonio
Carlos Pacheco e Silva (1898-1988).
Compartilhando dos pressupostos da eugenia negativa e entusiasmados com o
aprofundamento das pesquisas e da aplicação política da eugenia em outros países, esses
autores elegeram a Alemanha como modelo e, como obstáculos para trilhar esse caminho,
a religião católica e, de forma mais imprecisa, o fato de pertencermos ao conjunto de
“povos latinos”, como insistiria Ernani Lopes (1933, p.278). Detendo-nos com mais atenção
sobre os textos em que esses autores analisaram a lei para a prevenção da prole geneticamente
doente, sobretudo em janeiro de 1934, quando ela passa a vigorar na Alemanha,
pretendemos apresentar sua avaliação do desenvolvimento científico alemão e das
perspectivas para o desenvolvimento da ciência eugênica no Brasil. Por último, visamos
mapear as diferentes estratégias propostas para se colocar perante a Igreja católica,
considerada o principal empecilho para a adoção de medidas equivalentes no país.
No Brasil, as ideias eugênicas passaram a ser divulgadas no contexto posterior à Primeira
Guerra Mundial, período de grandes mudanças no cenário nacional e de intenso debate
sobre o futuro racial do país. Além do processo de urbanização, industrialização e de
entrada de novos imigrantes, o final dos anos 1910 foi marcado pela expansão de um
nacionalismo militante e pelo sentimento de que a modernização do país dependeria de
amplas reformas sociais, especialmente em relação à saúde pública, à educação e à formação
racial da população (Skidmore, 1976; Oliveira, 1990; Stepan, 2005; Lima, 2007). Acalentada
por esses ideais, a elite intelectual e política de início do século XX almejava construir uma
nova identidade para o homem brasileiro, transformando a fisionomia do “Jeca” doente
e preguiçoso, tal qual havia definido o escritor Monteiro Lobato, em um “Jeca bravo” e
trabalhador (Lima, Hochman, 1996, p.32-33), que aos poucos deveria branquear-se com a
fusão de novos imigrantes europeus. Nesse sentido, quando as ideias eugênicas foram
introduzidas entre os brasileiros, seus adeptos rapidamente assumiram esse ideário reformista,
destacando a contribuição que a eugenia poderia apresentar para a transformação racial
do país.
Na literatura brasileira desse período, a palavra eugenia aparecia sempre como símbolo
de modernidade cultural, assimilada como conhecimento científico que expressava muito
do que havia de mais ‘atualizado’ na ciência moderna. Falar sobre eugenia significava
pensar em evolução, progresso e civilização, termos que constituíam o imaginário
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Eugenia ‘negativa’, psiquiatria e catolicismo
nacionalista de boa parte das elites brasileiras. Em muitos casos, a eugenia era interpretada
como a “nova religião da humanidade”; em outros, como a “ciência do futuro”, responsável
pela regeneração física e mental da população nacional (Souza, 2006, p.19). A própria
história da eugenia no Brasil, conforme argumenta a historiadora Nancy Stepan (2005,
p.49-50), deve ser vista como parte de um “endosso à ciência”, que se tornara “palavra de
ordem para a elite moderna e secular”.
Renato Kehl, a ciência alemã e a eugenia negativa
Entre os brasileiros e latino-americanos em geral, o eugenista de maior proeminência
foi, sem dúvida, o médico e escritor paulista Renato Kehl. Apesar de personagem pouco
conhecido na história intelectual brasileira, referências a seus trabalhos aparecem com
alguma frequência na historiografia nacional, especialmente nas discussões sobre raça,
imigração, controle matrimonial, higiene mental e eugenia. Entre 1917 e 1940 Renato
Kehl assumiu a propaganda eugênica como missão política e intelectual, o que lhe rendeu
o título de “pai da eugenia no Brasil”, conforme se referia o escritor Monteiro Lobato
(s.d.). Ao longo desse período, publicou mais de duas dezenas de livros diretamente
relacionados às ideias eugênicas, dentre os quais se destacam A cura da fealdade (1923),
Lições de eugenia (1929a), Sexo e civilização: aparas eugênicas (1933) e Por que sou eugenista
(1937). Foi também editor de revistas e periódicos nacionais, como o Boletim de Eugenia,
que circulou de 1929 a 1933, sendo um dos principais meios de promoção do movimento
eugênico brasileiro. Em 1918, com a colaboração do médico Arnaldo Vieira de Carvalho e
um grupo de influentes intelectuais da capital paulista, fundou a Sociedade Eugênica de
São Paulo e, em 1931, a Comissão Central Brasileira de Eugenia.
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Nos anos 1910 e 1920, a trajetória desse autor esteve estreitamente associada ao movimento
médico-sanitarista e a um grupo de psiquiatras ligado à higiene mental, sobretudo na
ocasião em que foi nomeado para realizar os serviços de propaganda e educação higiênica
do Departamento Nacional de Saúde Pública, entre 1920 e 1927. Ao longo desses anos,
apesar de assumir posições mais radicais quanto às questões eugênicas, defendeu, de maneira
geral, um modelo de eugenia que em muito se confundia com os pressupostos da medicina
social. De um lado, suas concepções ligavam-se a um tipo de eugenia preventiva, responsável
pela higiene e profilaxia das doenças e dos chamados vícios sociais e, de outro, à ‘eugenia
positiva’, cujas medidas consistiam em estimular a reprodução dos indivíduos considerados
mais aptos.
Contudo, a partir do final dos anos 1920 sua relação com esse modelo de eugenia mais
“suave”, ao “estilo latino”, conforme sugere a historiadora Nancy Stepan (2005), perderia
espaço em sua produção intelectual. Se até esse período Renato Kehl compartilhava um
ponto de vista otimista sobre o futuro do Brasil, passaria, a partir de então, a ver com
ressalvas as promessas reformadoras propostas pela maioria dos intelectuais brasileiros. Seu
distanciamento em relação ao pensamento médico-sanitarista e sua crescente simpatia
pelos conceitos mais extremados da eugenia negativa, mudariam a própria rede de relações
que seria estabelecida pelo autor a partir do final dos anos 1920. Seu diálogo intelectual
gradualmente deslocava-se do paradigma eugênico latino-americano para aquele de estilo
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Robert Wegner, Vanderlei Sebastião de Souza
anglo-saxônico e germânico, atraído pela ascensão de ideias eugênicas mais radicais que
emergiam em países como a Alemanha e os EUA, cujas medidas procuravam impedir a
reprodução dos sujeitos tidos como inaptos.
Esse processo de ruptura, conforme destaca Souza (2006), se teria iniciado no final dos
anos 1920, quando Renato Kehl se desligou do Departamento Nacional de Saúde Pública
para dedicar-se exclusivamente às funções de diretor da Indústria Química e Farmacêutica
Bayer do Brasil, cuja sede se localizava no Rio de Janeiro (Dados..., 1954). A função como
diretor de uma indústria alemã e suas seguidas viagens ao norte da Europa, aliadas à boa
receptividade da eugenia no Brasil e às polêmicas que essas ideias vinham suscitando no
meio intelectual, contribuíram para um processo de mudança não apenas em sua carreira
profissional, mas também em suas posições ideológicas e na maneira de conceber a realidade
antropológica brasileira.
Um ano após ter assumido a direção da Casa Bayer do Brasil, Renato Kehl foi convidado
pela multinacional alemã para realizar uma viagem de cinco meses pelo norte da Europa,
especialmente à Alemanha. Nessa viagem, visitou várias universidades e institutos de
antropologia e eugenia alemães e de outros países do norte europeu. Na Alemanha, visitou
e realizou pesquisas no Instituto de Eugenia de Berlim, travando contato com seu diretor,
o eugenista Hermann Muckermann, e com o eugenista e antropólogo Hans Haustein;
conheceu também o já renomado eugenista e antropólogo Eugen Fischer, diretor do Instituto
de Antropologia, Genética Humana e Eugenia da Universidade Kaiser Wilhelm, de Berlim;
visitou ainda museus de antropologia e eugenia, como o Museu de Higiene Racial da
cidade de Dresden.
Em suas correspondências particulares e institucionais é possível perceber relações
intelectuais frequentes com médicos, psiquiatras, biólogos, antropólogos e eugenistas,
muitos deles diretores de institutos, associações, revistas e periódicos ligados ao movimento
eugenista europeu. Correspondia-se, por exemplo, com eugenistas do Instituto de
Antropologia de Viena, na Áustria, sobretudo com seu diretor, o médico e antropólogo
Alfred Hermann. Na Suécia, país com grande tradição nos estudos de eugenia e biologia
racial, manteve estreito contato com Hermann Lundborg, diretor do Instituto de Biolo-
gia Racial de Uppsala e importante referência para os trabalhos que o eugenista brasileiro
publicaria durante a década de 1930. O eugenista norueguês John Alfred Mjöen, diretor
do Winderen Laboratorium e da conceituada revista Den Nordiske Race foi outra figura
importante a quem Renato Kehl fez constantes referências.
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Além do diálogo e da troca constante de material bibliográfico e de estudos sobre
eugenia, essa rede internacional incentivaria o eugenista brasileiro a conduzir suas atenções
em direção às ideias eugênicas que vinham sendo discutidas amplamente também nos
EUA, em especial às concepções defendidas pelo geneticista Charles Davenport, diretor da
Eugenics Record Office, a principal associação eugênica norte-americana (Souza, 2007).
Não à toa, a partir do final dos anos 1920 as ideias e concepções defendidas por eugenistas
alemães e norte-americanos passariam a ser constantemente citadas nos trabalhos de Renato
Kehl, servindo como referência primordial para a formulação de seu radical projeto eugênico.
Desde então, artigos, resenhas e comentários de eugenistas alemães e norte-americanos
passariam a ser traduzidos com bastante frequência no Boletim de Eugenia, ou mesmo na
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Eugenia ‘negativa’, psiquiatria e catolicismo
imprensa de circulação diária. Para Renato Kehl (1931a), aliás, não se poderia aprender ao
certo o que é eugenia sem ler em inglês ou alemão.
Em setembro de 1928, quando de seu retorno ao Brasil, Renato Kehl argumentava, em
entrevista concedida à imprensa carioca, que o que mais o impressionou, sobretudo na
Alemanha, foi a preocupação “com a capacidade racial” da população e com a produção
de um maior número de “homens válidos”. Após o “abalo racial” causado pela guerra
mundial, explicava ele, referindo-se à Primeira Guerra Mundial, a “integridade somática
das nacionalidades” ainda seria uma preocupação constante dos eugenistas e das autoridades
públicas europeias. Alguns países “apelam para a nova arma” que a ciência eugênica lhes
oferece, dizia Kehl, “por meio da qual poderão constituir, no seu seio, ‘elites’ como as
helênicas dos tempos heróicos”. Assim, “torna-se, pois, interessante, acompanhar o
movimento eugênico europeu, sobretudo o alemão, pelo qual se aquilata a profunda
preocupação aí reinante a propósito da salvação nacional pela higiene da raça” (Kehl, 18
set. 1928).
Nesse sentido, ressaltando o desejo da cultura alemã em formar novas elites, Kehl
apontava um dos aspectos que sintetizavam e animavam a eugenia na Alemanha: o
pensamento arianista. Em suas palavras, a propaganda pela eugenização aparecia com
muita frequência em jornais, periódicos e revistas, tanto na Alemanha quanto na Áustria,
Noruega, Suécia e Dinamarca. Pregava-se, acima de tudo, “a necessidade de racionalizar a
reprodução” e orientar os “casais fortes, com ótimos caracteres”, a ter o maior número
possível de filhos, o que possibilitaria a preservação das qualidades da “raça ariana”. O
caminho da Europa para vencer a decadência seria seguir a Alemanha, “onde o futuro da
raça é a preocupação máxima”, concluía ele, entusiasmado (Kehl, 18 set. 1928).
Vale ressaltar que o período em que Renato Kehl esteve na Alemanha, de abril a setembro
de 1928, coincidiu exatamente com um momento de efervescência do movimento eugênico
daquele país. Entre 1926 e 1930, jornais e revistas especializadas nas discussões sobre eugenia,
genética e hereditariedade passaram a circular com mais intensidade, principalmente em
Berlim, Dresden e Munique, promovendo as medidas eugênicas como importantes
ferramentas para alavancar o futuro da nação germânica. Em 1927, seria fundado o Instituto
de Antropologia, Genética Humana e Eugenia, anexo ao Kaiser Wilhelm Institute, criado
em 1924 com Recursos da Fundação Rockefeller. No ano seguinte, os principais eugenistas
da Alemanha se reuniriam para criar a Aliança Internacional de Organizações Eugênicas,
exatamente no momento em que vários eugenistas e outros cientistas estrangeiros se dirigiam
à Alemanha com o objetivo de estudar e conhecer as instituições científicas daquele país
(Weiss, 1990, p.35-37). É possível afirmar, aliás, que o movimento pela “higiene racial”,
criado durante a República de Weimar (1918-1933), formou as bases ideológicas e
institucionais que constituiriam parte do imaginário arianista e das ideias eugênicas que
seriam desenvolvidas durante o Terceiro Reich (1933-1945) (Proctor, 1988).
Nas palavras de Renato Kehl (1929d, p.5), os empreendimentos científicos criados pelos
eugenistas alemães, especialmente o Instituto de Eugenia de Berlim, foram capazes de levar
adiante “o estudo experimental de biologia racial e antropológica em todo o Reich”, o que
vinha contribuindo significativamente para impedir a “marcha da degeneração” e para
conservar as “qualidades do povo alemão”. Em sua opinião, com a fundamentação
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História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro
Robert Wegner, Vanderlei Sebastião de Souza
científica de todas as questões que envolviam a eugenia, a antropologia, a higiene mental
e a biologia racial, seria possível criar também no Brasil “condições preliminares mais
necessárias à reconstrução da cultura presente, coisa que o bioplasma ou a base hereditária
do nosso povo precisa urgentemente”.
De volta ao Brasil, Kehl trazia anotações, livros, artigos e “um bando de novas ideias”
que animavam seu projeto eugênico. Três meses depois, criava o Boletim de Eugenia, editado
e dirigido por ele, e, em junho de 1929, anunciava a publicação de Lições de eugenia, livro
que se constituía como sua principal e mais polêmica obra (Kehl, 1929a). Como já vinha
ocorrendo com os últimos artigos publicados desde sua viagem à Europa, o livro continha
ideias e concepções que refletiam fortemente as influências que os eugenistas europeus e
norte-americanos passaram a exercer sobre seu pensamento. Ao longo das 12 lições que
compunham a obra, Renato Kehl não economizou referências a autores e instituições
eugênicas que lhe despertavam grande simpatia intelectual, em geral relacionadas ao
movimento eugenista alemão.
Como forma de reforçar sua autoridade intelectual nesse campo, o autor se propunha
apresentar nesse livro as “verdadeiras lições de eugenia”, principalmente às pessoas que
ainda não possuíam um “juízo exato” sobre os fundamentos dessa ciência. Em suas palavras,
a eugenia deveria ser entendida conforme definiam os eugenistas alemães: “ela é a higiene
da raça”, a “seleção racional”, “a aplicação total das ciências biológicas” para o
aperfeiçoamento da humanidade. O programa da eugenia traçado nessa obra visava,
segundo explicação do autor, “favorecer a estabilização de qualidades hereditárias ótimas
e impedir a aquisição de caracteres degenerativos e transmissíveis hereditariamente” (Kehl,
1929a, p.6).
Desse modo, sugeria explicitamente as principais medidas eugênicas que norteavam os
princípios da “eugenia negativa”: o controle deliberado da reprodução humana. Em suas
palavras, a “eugenia negativa apresenta vários recursos de ordem científica” para melhorar
o equilíbrio entre os indivíduos “normais” e os “anormais”, entre a fecundidade dos “bem-
dotados” e a dos “maldotados” (Kehl, 1929a, p.150). De seu ponto de vista, a esterilização
dos indivíduos degenerados deveria ser considerada importante medida de “profilaxia
racial”, devendo ser indicadas aos indivíduos criminosos, “anormais” e “inaptos” que
apresentassem qualquer “estigma de degeneração”. Chegou a sugerir a proibição de
casamentos entre indivíduos considerados de “raças diferentes”, principalmente entre
“brancos” e “pretos”, “brancos” e “indígenas”, ou entre “brancos” e “mestiços”, já que,
de acordo com as concepções que passou a defender a partir do final dos anos 1920, a
miscigenação levaria fatalmente à degeneração da nacionalidade (p.190-191). Assim, o
problema da segregação racial e da esterilização de anormais, acreditava ele, “interessa
tanto aos que vivem como aos que estão para nascer. O homem precisa, para o próprio
bem, constituir uma humanidade de ‘bons animais’, organizando dentro dela a ‘aristocracia
dos eugenizados’” (p.153).
Modelando seu projeto eugênico a partir da crença na eficácia dessas medidas mais
extremadas, Renato Kehl tornava-se progressivamente mais cético quanto à capacidade
que a “eugenia preventiva”, a higiene e a educação apresentavam para melhorar as
qualidades raciais das futuras gerações. Conforme ressaltava durante o Primeiro Congresso
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Brasileiro de Eugenia, realizado em 1929, apesar de a educação e a higiene representarem
importantes instrumentos para o progresso social, “é na aplicação das leis da hereditariedade
que se encontra a alavanca mestra do progresso biológico”. De seu ponto de vista, os fatos
históricos demonstram que a educação e as mudanças do ambiente “não bastam para
moderar as paixões, para tornar a humanidade melhor, mais equilibrada... Isto porque o
homem continuou escravo de sua natureza particularíssima ..., preso a uma força que
o subjuga biologicamente, que lhe imprime o temperamento, o caráter, de modo inexorável,
a “hereditariedade”. Nesse sentido, dizia ele, “fazer homens bons ou maus”, torná-los
“eugenicamente superiores”, não dependeria da alimentação, do clima, da religião e da
cultura, dependeria antes da “alavanca mestra do progresso biológico que é a aplicação
das leis da hereditariedade, segundo os preceitos da eugenia” (Kehl, 1929b, p.47).
Desse modo, assumindo um radical determinismo biológico e, ao mesmo tempo,
distanciando-se dos preceitos da medicina social, Renato Kehl afirmava que “enquanto o
problema da regeneração humana não for encarado sob o ponto de vista biológico”, não
deixariam de existir “os contrastes sociais e individuais, as crises e ameaças à paz na família,
na sociedade e entre as nações” (Kehl, 1929b, p.48). Essa concepção determinista decorria
de uma visão biológica obsessiva sobre as diferenças entre os indivíduos, centrada acima de
tudo nos princípios da hereditariedade enquanto paradigma eugênico. Encerrando sua
conferência, Renato Kehl lembrava aos eugenistas presentes ao Primeiro Congresso Brasileiro
de Eugenia que era preciso trabalhar com vistas à “pôr moldura digna no grande quadro
da natureza” (p.58).
Em artigo publicado no jornal Correio da Manhã, em que mantinha coluna semanal
intitulada “Aparas médicas”, Renato Kehl (29 ago. 1930) voltava a se referir à incapacidade
que as ações do meio social teriam em contribuir para mudar a constituição física e intelectual
dos indivíduos. Em sua concepção, cada indivíduo seria “escravo da constituição que lhe
coube por herança” e, ao contrário do que ocorria com as folhagens de uma planta ou as
ogivas de uma catedral, o homem não poderia jamais corrigir seu caráter e seus instintos
pelas simples forças do meio em que vivia. Nas palavras do autor,
Os estudos modernos sobre hereditariedade, constituição e temperamento demonstram
a evidência de que todos nós estamos presos a uma fatalidade orgânica e psíquica, à qual
não podemos fugir, e que os nossos atos dependem, essencialmente, da nossa constituição,
de nosso temperamento e não da simples influência do meio e de circunstâncias mais ou
menos imprevistas (Kehl, 29 ago 1930, s.p.).
Dessa maneira, em diálogo com um modelo de eugenia de cunho racista e
biologicamente determinista, ao estilo da eugenia germânica, Renato Kehl ressaltava que
não haveria solução para os grandes problemas nacionais sem um programa eugênico
voltado para a “política biológica” (Kehl, 1929a, p.49). Segundo ele, caberia ao Estado a
criação de uma política eugênica que pudesse intervir eficientemente para evitar a proliferação
dos “indivíduos indesejáveis”, como os mestiços, criminosos e doentes mentais, que tanto
atraso causavam ao progresso da nacionalidade. Pode-se dizer que Kehl visualizava a nação
como um grande corpo biológico que deveria ser guiado de maneira racional, tanto pelas
forças políticas do Estado quanto pelo saber científico.
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História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro
Robert Wegner, Vanderlei Sebastião de Souza
Ao longo dos anos 1930, Renato Kehl radicalizaria ainda mais sua campanha em prol
da aplicação de medidas eugênicas mais ‘duras’. Sua posição contrária à ‘importação’ de
imigrantes asiáticos, negros e árabes, suas críticas ao matrimônio interracial e seu pessimismo
em relação ao processo de miscigenação ganhariam consistência ideológica com a ascensão
que as ideias eugênicas mais autoritárias vinham conquistando no cenário internacional.
Seu racismo científico aparecia com cores mais fortes no livro Sexo e civilização: aparas
eugênicas, publicado em 1933, menos de um ano após sua segunda viagem ao norte da
Europa (Kehl, 1933).
Coincidentemente, o mais novo livro de Renato Kehl aparecia no mesmo ano em que
o chanceler Adolf Hitler chegava ao poder na Alemanha. Como se sabe, seu governo ficou
caracterizado pelo emprego de um discurso nacionalista que se afirmava pela defesa do
arianismo germânico e do racismo biológico, o que possibilitou que as ideias eugênicas
mais radicais ganhassem amplo destaque junto ao governo nazista. Não à toa, eugenistas
de várias partes do mundo viram com simpatia o empenho do governo alemão na
implementação de medidas radicais para assegurar a reprodução eugênica de sua população.
No Brasil, Kehl foi um dos mais entusiastas do projeto arianista proposto pelo governo
alemão. Posições favoráveis à política eugênica nazista apareceriam mais claramente em
1935, na publicação da segunda edição de Lições de eugenia, por meio da qual o autor
destacaria a importância da criação do Tribunal Eugênico alemão, no qual o Estado nazista
havia instituído “um verdadeiro Código de proteção racial”. Em suas palavras, a Alemanha
é “onde se pratica, atualmente, a eugenia com mais amplitude e coragem. O sistema eugênico
alemão de proteção racial impressionou os cientistas e governantes de vários países,
especialmente do norte europeu que, aos poucos, estão adotando os mesmos dispositivos
regulamentares, apenas com algumas variantes” (Kehl, 1935, p.25-26).
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