As Transformações e os Desafios do Encadeamento Produtivo do Etanol no Brasil
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A Petrobras, criada na década de 1950, com o intuito de atuar na pesquisa,
exploração e refino de petróleo e gás, somente passou a operar nesta área na década
de 1970, segundo Lopes (2009). Até a década de 1990, oito grandes distribuidoras
trabalhavam com etanol no país. Marjotta-Maistro e Barros (2002) assinalam que,
com a gradativa liberação do setor, emergiram distribuidoras pequenas e médias,
porém, o número crescente de empresas no período pós-regulamentação não
impediu a concentração do mercado, como se detalha na seção seguinte.
Vale destacar que alguns dos maiores impactos da desregulamentação do setor
se deram justamente neste elo da cadeia do etanol. O período da gradual desregu-
lamentação assistiu a protestos de ambos os lados, com necessidade de adaptação
ao ambiente competitivo por parte de indústrias e distribuidoras. Em 1997, houve
autorização para que os postos pudessem adquirir combustíveis das distribuidoras,
o que, junto com outras medidas, permitiu um aumento no número de empresas
operando na distribuição. As grandes distribuidoras passaram a alegar que algumas
dessas pequenas e médias distribuidoras usavam práticas desleais, operando sem
regularização (sustentadas por liminares para a suspensão de pagamento de
tributos), além de supostamente adulterarem combustíveis ou sonegarem impostos.
As indústrias, por sua vez, alegavam que as grandes distribuidoras estavam
praticando cartel para diminuição do preço e queriam inibir a entrada de novos
demandantes no mercado. O fato é que, quando as regras objetivando a livre
concorrência foram implantadas, em maio de 1999, havia mais de trezentas
empresas ofertando etanol para poucas grandes distribuidoras. Somado à diminuição
no consumo do combustível (em um período em que os carros movidos a álcool
eram minoria e ainda não existiam os automóveis bicombustível), o resultado foi
uma queda no preço do litro recebido pelos produtores de etanol, de R$ 0,41 para
R$ 0,16 naquele mesmo mês (Vian, 2003).
No período pré-desregulamentação, um componente da estatal que afetava
o desenvolvimento deste elo produtivo era o fato de que os preços do etanol eram
fixados pelo governo federal, tendo por base uma paridade com os preços do açúcar.
A liberação dos preços obrigou as indústrias a voltarem suas estratégias para a redução
de custos, de modo a possibilitar não apenas obter maiores margens, como também
competir com a gasolina como fonte de combustível, além de ter que envidar
esforços para a obtenção de um melhor preço na negociação com as distribuidoras.
Para lidar com o cenário adverso de preços na negociação, cerca de 170
indústrias, que detinham 85% da produção da região Centro-Sul, se juntaram na
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criação da Bolsa Brasileira de Álcool (BBA) e da Brasil Álcool.
13
Embora tenham
conseguido uma elevação nos preços, a iniciativa não perdurou: a dificuldade para
conciliar os interesses de um grande número de empresas, a visão oportunista de
alguns atores e, por fim, a decisão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica
(Cade) que julgou a concentração excessiva, levaram à extinção do grupo.
A experiência com a Brasil Álcool e a BBA, ainda que não tenham perdurado,
trouxe como resultado a criação de grupos menores de comercialização de etanol.
A união de empresários para reduzir custos e obter preços melhores foi um dos
fatos mais importantes do período posterior à desregulamentação, como apontam
Vian (2003) e Mello (2004).
De acordo com Marques (2011), a reunião das indústrias para criação
desses grupos de comercialização menores se deu em torno de núcleos, tendo como
critério fatores diversos, como experiências anteriores de associação, prestígio dos
líderes dos grupos e relações de sociedade em outros empreendimentos.
Esses núcleos deram origem à SCA Etanol do Brasil, Bioagência e CPA Trading S/A,
bem como impulsionaram o crescimento da Copersucar, grupo criado
anteriormente a esse processo. Outros grupos chegaram a ser criados, como Allicom,
Brasil EBC e Sol, mas os quatro primeiros são os que perduram e cujas unidades
associadas respondem pela maior parte da produção de etanol no Centro-Sul:
aproximadamente 60% do total.
14
A operação dos grupos pode tanto ser realizada por uma empresa independente,
remunerada pelos associados, como pode se constituir em cooperativa, cujos sócios
são as indústrias. Conforme discutido a seguir, os grupos também se diferenciam
quanto aos serviços oferecidos e às estruturas disponibilizadas às unidades associadas.
O mecanismo de venda mais presente na relação entre as unidades produtoras
de etanol e as distribuidoras é uma combinação de contratos e mercado spot.
Como relata Dolnikoff (2008), ao firmar contratos, as destilarias garantem fluxo de caixa
mais estável, ao passo que as distribuidoras conseguem estabelecer programação
logística que reduz seus custos, definindo previamente locais e volumes transacionados.
Vale destacar que o mercado futuro do etanol ainda é pouco desenvolvido, em parte
pela pouca presença das grandes distribuidoras, em parte pela falta de cultura dos atores.
Além disso, há também as oscilações do custo de produção da cana-de-açúcar, que
trazem risco à comercialização, inclusive sendo esse risco expresso nos indicadores
13. Enquanto a primeira realizava a comercialização, a segunda era responsável pelos estoques do setor.
14. Por considerarem uma informação estratégica, os grupos não divulgam o volume comercializado. Ao mesmo tempo,
não se pode afirmar que o montante comercializado é igual ao produzido, pois, mesmo que os contratos proíbam,
conforme Marques (2011), algumas unidades fazem vendas esporádicas diretas, sem participação da trading.
As Transformações e os Desafios do Encadeamento Produtivo do Etanol no Brasil
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Consecana e Cepea/Esalq.
15
Marques (2011) aponta que esse risco afeta a operação
de venda do etanol no mercado futuro devido às incertezas de margens e
lucratividade a que incorrem os possíveis compradores.
Segundo Marques (2011), independente do preço acertado em contratos do
mercado futuro, o custo do etanol à época de produção, no seu maior componente,
a cana-de-açúcar, será definido pelo indicador Consecana, que, por sua vez, é
atrelado em parte ao indicador Cepea/Esalq. Assim, o valor a ser pago pela indústria
ao produtor de cana dependerá desses indicadores. Como os preços sofrem forte
flutuação, o custo de produção pode aumentar, enquanto seus preços estariam
fixados no mercado futuro. As indústrias mais dispostas a operar no mercado
futuro são aquelas que possuem lavoura própria, com custo de produção definido
pela operação, e não pelo indicador Consecana.
Lopes (2009), em estudo de caso com um grupo de quatorze empresas do
estado de São Paulo, identificou que aproximadamente 70% do etanol anidro era
transacionado via contratos; o restante, no mercado spot. Para o hidratado, inverte-se:
cerca de 65% era vendido no mercado spot; 35% via contratos. A opção por
firmar contratos para o suprimento do etanol anidro justifica-se pelo receio que
as distribuidoras têm de que haja escassez do produto para misturá-lo à gasolina.
Para esse produto, normalmente há contratos de fornecimento de longo prazo e
para o qual a legislação determina mistura obrigatória do etanol anidro, sendo as
distribuidoras responsáveis pelo suprimento do mercado.
Quando firmados contratos, estes costumam ter um ano de vigência e
estipulam cláusulas quanto a volume, prazo de retirada e percentuais de descontos
(normalmente obtidos pelas grandes distribuidoras segundo o volume negociado).
Concede-se o desconto sobre o valor do indicador Cepea/Esalq, variável não só
de acordo com o montante transacionado, mas também com a localização da
indústria: quanto mais distante a destilaria está de uma base de distribuição, maior
deve ser o desconto concedido à distribuidora, já que o custo de frete, assumido
por esta última, será maior.
Vale destacar que, devido à menor reputação, entre outros possíveis fatores,
ao menor poder de barganha e por trabalharem com baixo volume, normalmente
as distribuidoras de pequeno porte compram o etanol no mercado spot.
Não é incomum, inclusive, que algumas delas paguem adiantado pelo produto.
Quando as transações são realizadas via grupos de comercialização (SCA,
Copersucar, CPA e Bioagência), as usinas conseguem obter preços mais vantajosos
15. O Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq)
da Universidade de São Paulo (USP) calcula os indicadores de preços internos e externos do açúcar e do etanol anidro
e hidratado, constituindo-se esses em preços de referência para o setor. O Consecana utiliza esses valores para publicar
mensalmente uma circular com o preço médio do quilograma do ATR.
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e melhores condições de venda do que obteriam se vendessem a partir de mesa
própria de operações. Isso advém tanto do maior volume transacionado pelo grupo
quanto da capacidade de negociação dos operadores, já que a venda se torna mais técnica.
Os benefícios dos grupos são maiores para as pequenas unidades produtoras: além
de terem dificuldade para manter profissionais mais qualificados para a venda,
sozinhas, não teriam acesso ao mercado externo e atuariam com menor frequência no
mercado doméstico. Uma possível consequência desse menor número de transações
e de contatos com diferentes agentes seria uma visão limitada do setor.
Ainda sobre os grupos de comercialização, há de se destacar que, normalmente,
os contratos são firmados diretamente entre indústrias e distribuidoras, tendo
a empresa coordenadora do grupo um papel de orientação aos seus associados,
negociação dos termos e administração dos contratos, para que sejam os mais
vantajosos possíveis às indústrias. Também de acordo com Marques (2011), o grupo
pode, na negociação, organizar arranjos com o intuito de consolidar cargas entre
diferentes usinas para vendas de maior volume ou, durante a gestão do contrato,
para cobrir quebra de safra de alguma unidade, evitando descumprimentos de
contratos que seriam prejudiciais às empresas do grupo como um todo.
Assim, a formação dos grupos de comercialização alterou a dinâmica competitiva
deste elo da cadeia. Os benefícios que proporcionam às indústrias associadas são:
melhora no poder de barganha; solução de assimetria de informações, que pendia
para as distribuidoras; aumento da racionalidade das indústrias, pelo maior fluxo
de informações; acesso a serviços complementares, como estudos de mercado e
consultorias jurídicas; abordagem de venda voltada para a construção de mercado;
sinalização de preços, de modo a influenciar nos indicadores; e especialização na
venda, permitindo à indústria concentrar-se no negócio de produção. Por vezes,
extrapola-se também a esfera comercial, com os grupos constituindo-se em um
centro de inteligência de mercado e um fórum de discussão e cooperação entre as
indústrias, em aspectos agrícolas e industriais.
Marques, Paulillo e Vian (2012) mostram que, quando as indústrias optam
por unir-se em grupos, sob a coordenação de uma autoridade e de mecanismos de
planejamento e controle, mas mantendo sua independência, criando uma estrutura
complexa que reduz ações oportunistas e possibilita cooperação, conferem à relação
uma característica de governança em rede. Esses grupos apresentam diferentes
formas de organização, como: i) sistema de decisões de venda tomadas por cada
unidade associada, ou pela coordenadora; ii) estabelecimento de distintos níveis
de rigor jurídico na relação; e iii) adoção opcional de estruturas logísticas (questão
sensível ao setor e, por isso, aprofundada na seção seguinte). Cada grupo define
sua forma de organização e quais os serviços oferecidos, com os termos normal-
mente especificados nos contratos de associação ou definidos em assembleias.
As Transformações e os Desafios do Encadeamento Produtivo do Etanol no Brasil
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Um exemplo dessa governança em rede multifacetada está nas diferentes formas de
remuneração da empresa coordenadora do grupo: ela pode ser um percentual sobre
os valores de cada transação concretizada pelo grupo; ou um valor fixo em reais,
definido a partir de uma previsão dos custos administrativos da empresa divididos
pela produção esperada das associadas, e que é aplicado sobre cada metro cúbico
comercializado; ou simplesmente compor o custo da empresa, cujos lucros serão,
ao final do exercício, distribuídos entre as usinas (suas sócias).
Considerando-se que uma cadeia produtiva eficiente é aquela que não apenas
resolve problemas de produção, mas também os de transação, ou seja, as relações
entre clientes e fornecedores, a criação dos grupos trouxe benefícios ao setor como
um todo. Mesmo distribuidoras, que obtêm preços menos vantajosos, reconhecem
que a relação fica mais profissionalizada, com melhor coordenação de carregamentos
e transportes. Ainda assim, cabe destacar que os grupos não foram capazes de
solucionar o planejamento de longo prazo, que é um dos maiores problemas do
setor como um todo. Não há coordenação capaz de equilibrar oferta e demanda
com a criação de estoques reguladores, o que traz instabilidade de preços e prejuízos
à imagem do setor.
Embora o período de maiores transformações neste elo tenha ocorrido entre
fins da década de 1990 e começo da década seguinte, não se pode falar em estabilidade.
Frequentemente, representantes do setor industrial defendem a permissão para
venda direta do etanol a postos de combustível. Além disso, é preciso destacar
os recentes acordos estratégicos entre empresas petrolíferas e grupos industriais
sucroalcooleiros, como as parcerias da Petrobras com destilarias e a joint-venture
Cosan/Shell, que criou a Raízen.
16
A existência de uma corporação que exerce, ao mesmo tempo, papel de produção
agrícola (em unidades com cana própria), indústria e distribuição, com atuação
logística (por meio de seus tanques de armazenagem e caminhões) e presença no
varejo (por meio dos postos bandeirados), é fenômeno novo, que pode contribuir
para uma visão menos fragmentada do setor por parte de seus atores. Uma visão
menos fragmentada permitiria vislumbrar que embora as empresas concorram na
disputa por preços, compradores ou mesmo fornecedores, devem trabalhar para
fortalecer o etanol diante de outras fontes de energia. A própria Raízen ilustra esse
misto de competição e cooperação: ainda que haja troca de informações, indústria
e distribuição são tratadas como unidades de negócio independentes dentro da
corporação, tanto é que suas unidades industriais continuam a comercializar por
meio do grupo de comercialização SCA, que negocia com diversas distribuidoras
para obter o melhor preço possível.
16. Em 2008, a Cosan havia adquirido os ativos da Esso no Brasil. Em 2010, Cosan e Shell criaram a Raízen.
Ver detalhes no capítulo 7.
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Caracteriza-se, assim, um desequilíbrio nas relações comerciais entre um
segmento ainda fragmentado, a indústria, ante outro extremamente concentrado, a
distribuição. Tal situação influencia os preços praticados e as funções desempenhadas
por cada ator deste elo. A seção seguinte traz outros detalhes sobre esses aspectos.
3.2 Aspectos logísticos
Conforme já mencionado, os aspectos logísticos são muito importantes para a
competitividade da cadeia, dado seu impacto sobre os custos e, consequentemente,
sobre o preço ao consumidor final. Em regra, comparadas às unidades industriais,
as distribuidoras assumem maiores responsabilidades nos fluxos de produto,
serviços e promoção ao longo da cadeia do etanol, especialmente aquelas ligadas
ao Sindicato dos Distribuidores de Combustíveis (Sindicom), por exercerem maior
liderança sobre o canal de distribuição (Lopes, 2009).
Prevalece, na transação, a cultura da venda free on board (FOB), na qual frete
e seguro ficam por conta da distribuidora, que busca o produto nas destilarias e o
transporta até suas bases. A venda cost, insurance and freight (CIF), com frete e seguro
por conta de quem vende, ocorre esporadicamente, de acordo com Lopes (2009),
quando a usina possui caminhões e opta por levar o etanol até a distribuidora, para
que possa retornar com diesel para abastecer sua frota; ou a demanda por etanol
está elevada e a distribuidora não possui frota suficiente para coletar o produto.
A criação de estoques reguladores ainda é um ponto não resolvido na cadeia.
Se considerada a característica da produção industrial, concentrada em quatro
meses do ano, estendidos a sete ou oito meses em algumas regiões, e o fato de a
cana-de-açúcar ser uma cultura de ciclo longo, a criação dos estoques permitiria
menor variação nos preços. Porém não está claro a quem cabe a criação desses estoques.
Não há uma coordenação que realize um planejamento conjunto, de modo a
reduzir os momentos de excedente e de escassez de oferta, situações que geram,
respectivamente, oscilações de preços para baixo e para cima. Nos últimos anos,
o governo tem incentivado o financiamento dos estoques, por meio da oferta de
um montante de recursos com taxas equalizadas. Esses financiamentos podem ser
obtidos tanto por indústrias quanto por cooperativas de produtores, empresas de
comercialização de etanol (inclusive os grupos acima citados) e distribuidoras de
combustível. A oferta de financiamento aos diversos atores do elo ilustra como não
está definido quem é o responsável pelos estoques. As indústrias poderiam utilizá-los
para aumentar o poder de barganha nas vendas, porém, muitas delas, por estarem
endividadas, não têm condições de tomar empréstimos ou arcar com seus custos.
A rede de armazenagem é formada por tanques das indústrias e tanques
das distribuidoras. Levantamento da Conab (2012) mostra que, nas unidades
produtoras, em todo o país, a média da relação entre a capacidade de armazenagem
e a produção de etanol é de 59,4%. Desta forma, as distribuidoras adquirem
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um importante papel na armazenagem, principalmente para abastecer mercados
distantes dos centros produtores. Explica-se: enquanto o estado de São Paulo é
responsável por 56,6% do consumo de etanol hidratado, ele conta com apenas
32,4% da capacidade de armazenamento de etanol por parte das distribuidoras.
As distribuidoras também precisam manter tanques de armazenagem de etanol anidro
para efetuar a mistura com a gasolina do tipo A, que resulta na gasolina tipo C.
Um fator que pode reduzir os custos logísticos, com reflexos positivos sobre
a cadeia a jusante é a entrada em operação do etanolduto, que pretende ligar os
estados de Goiás e Mato Grosso do Sul até os portos de São Sebastião e do Rio de
Janeiro, passando por São Paulo e Minas Gerais.
17
Além de possibilitar menor custo
para a distribuição dentro da maior região produtora e consumidora de etanol,
facilitará o escoamento do produto para o mercado internacional.
4 O ELO DISTRIBUIÇÃO-REVENDA VAREJISTA
4.1 Transformações no marco regulatório e impactos sobre a distribuição de etanol
Alterações recentes no mercado de combustíveis impactaram também o elo distribuidor,
assim como os demais. A intervenção estatal, no tocante à distribuição e revenda,
destacava-se no controle de preços, especialmente para o sucesso dos planos
econômicos de estabilização nas décadas de 1970 e 1980. À época, a intervenção
também atendia a características da política energética nacional adotada após os
choques do petróleo da década de 1970.
A série de mudanças estruturais e legais que promoveram alterações
substanciais no elo distribuição-revenda, a partir da década de 1990, ensejou não
apenas a abertura comercial, como também a retirada de barreiras à entrada, e
ainda o fim do controle das margens de comercialização e fretes na distribuição
e revenda de combustíveis, como descrevem Esteves e Baran (2011) e Soares,
Paulillo e Candolo (2013). Adicionalmente, foi proibida a integração vertical
dos distribuidores a jusante, ficando o elo atacadista restrito aos distribuidores e
o elo varejista restrito aos proprietários de postos. A estes últimos ficou permitida
a atuação como posto vinculado (por contrato de exclusividade de fornecimento)
ou se manter desvinculado do distribuidor, atuando como o que se convencionou
chamar “bandeira branca”.
Embora a política pública de desregulamentação na distribuição de combustíveis
tivesse como objetivo principal o aumento da competição neste segmento, o que
ocorreu foi exatamente o contrário, pois resultou um expressivo aumento da
concentração do mercado distribuidor, conforme os dados na tabela 3.
17. O etanolduto é um projeto da Logum Logística, que estima uma redução de 20% nos custos de transporte em
comparação ao modal rodoviário. O primeiro trecho entre Ribeirão Preto e Paulínia já está em funcionamento;
o segundo, entre Ribeirão Preto e Uberaba, entrou em fase de testes no segundo semestre de 2014. São sócios da Logum:
Petrobras, Odebrecht, Raízen, Copersucar, Camargo Corrêa e Uniduto Logística.
Quarenta Anos de Etanol em Larga Escala no Brasil: desafios, crises e perspectivas
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TABELA 3
Evolução dos índices de concentração na distribuição de etanol (anos selecionados)
Índices de concentração
2000
2003
2005
2007
2009
2012
CR(3)
32,31
34,44
41,52
40,99
52,36
56,93
CR(5)
46,79
45,84
53,94
52,96
61,22
61,87
HHI
573
617
746
744
1.048
1.141
Firmas no mercado
166
158
162
176
154
156
Fonte: ANP (2000; 2003; 2005; 2007; 2009; 2012).
Elaboração dos autores.
Obs.: CR3 – índice de concentração nas três maiores firmas; e CR5 – índice de concentração nas cinco maiores firmas.
Os dados mostram uma concentração crescente na distribuição de etanol,
embora este ainda seja a menor concentração dentre os três combustíveis automotivos
18
(gasolina, diesel e etanol). A menor concentração do etanol, comparativamente
aos derivados de petróleo, se deve ao fato de que a revenda atacadista de etanol
é muito mais dispersa e representa maior facilidade logística para os pequenos
distribuidores. Em certos casos, estes não dispõem de tantas bases de distribuição,
podendo, portanto, carregar o etanol hidratado já na usina e realizar suas entregas.
Essa crescente concentração da distribuição de etanol se relaciona com os
movimentos de fusão e aquisição das principais distribuidoras em atuação no
mercado nacional. Destacam-se três principais processos de concentração desse
mercado. Um deles foi a aquisição da Ipiranga pelos grupos Ultra, Petrobras e
Braskem em 2007, estabelecendo controle da Petrobras BR sobre os postos das
regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e controle do grupo Ultra sobre os postos
das regiões Sul e Sudeste. O segundo, em dois atos, foi a compra da Texaco pelo
grupo Ultra, em 2008, e a aquisição da Esso pela Cosan. Conforme já citado, em
2010 foi anunciada a fusão entre Cosan e Shell dando origem à marca Raízen,
mantendo a bandeira Shell. A evolução das participações de mercado das principais
distribuidoras (tabela 4) ilustra as mudanças descritas.
TABELA 4
Evolução das participações mercado Etanol – grandes distribuidores (anos selecionados)
Marca/distribuidor
Etanol
2000
2003
2005
2007
2009
2012
BR
13,3
16,2
17,4
17,8
22,2
20,5
Ipiranga
10,5
11,2
13,9
12,4
17,0
17,5
Esso
8,4
5,5
5,3
5,0
–
–
Shell
7,7
6,8
10,1
10,6
13,0
–
Texaco¹
6,7
5,4
7,0
6,8
–
–
Raízen²
–
–
–
–
5,0
18,8
Outras
53,4
55,9
48,3
50,4
46,8
48,2
Soma
100
100
100
100
100
100
Fonte: ANP (2000-2013).
Notas: ¹ Chevron.
² Cosan.
18. Em 2012, o CR (3), o CR (5) e o HHI foram respectivamente iguais a 65,8, 73,2 e 1.576 para a gasolina e
76,7, 81,9 e 2.313 para o diesel.
As Transformações e os Desafios do Encadeamento Produtivo do Etanol no Brasil
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211
Importante citar que um dos pontos positivos advindos do aumento da
concentração em todos os elos da cadeia foi a redução do mercado informal de
etanol hidratado. Tal dado refere-se à diferença entre aquilo que foi declarado pelas
usinas ao Mapa e o que é declarado pelas distribuidoras à ANP nas vendas para
postos revendedores e exportação, conforme dados da tabela 5.
TABELA 5
Mercado informal de etanol hidratado no Brasil
(Em milhões de m³)
Mercado
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
Etanol regular
4,6
3,5
3,8
3,2
4,5
4,7
6,2
9,4
13,4
16,5
15,1
Etanol informal
1,2
1,2
1,1
1,6
0,9
1,7
1,5
0,9
1,6
2,0
2,1
Etanol total
5,8
4,7
4,9
4,8
5,4
6,4
7,7
10,3
15,0
18,5
17,2
Participação do etanol
informal no total (%)
21
26
22
33
17
27
19
9
11
11
12
Fonte: Sindicom (2011, p. 59).
A despeito do mercado de distribuição de combustível manter-se concentrado,
pode-se afirmar que a desregulamentação instituiu certa segmentação que tem
reflexos sobre o perfil das empresas distribuidoras de etanol. Atualmente, há três
nichos competitivos que se diferenciam em relação ao posicionamento com o varejo
e em relação à data de entrada no mercado nacional de combustíveis, conforme
descrito no quadro 1:
QUADRO 1
Nichos competitivos – características
Característica/nicho
Independente
Regional
Dominante
Entrada
Após desregulamentação
Após desregulamentação
Pré-desregulamentação
Rede de negociação
Somente “bandeiras brancas”
“Bandeiras brancas” e franqueados “Bandeiras brancas” e franqueados
Atuação
Local
Local
Nacional
Elaboração dos autores.
A diferenciação entre esses três tipos de mercado caracterizados no quadro 1
e na tabela 6 permite identificar segmentos específicos de atuação e torna evidentes
grandes diferenças de porte entre as firmas distribuidoras, exceto no segmento
dominante, onde há certo equilíbrio entre os três grandes grupos que o compõem:
BR, Shell e Ipiranga.
Quarenta Anos de Etanol em Larga Escala no Brasil: desafios, crises e perspectivas
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TABELA 6
Nichos competitivos do mercado de etanol – composição: comparação entre 2000 e 2012
Características/nicho competitivo
Independente
Regional
Dominante
Ano
2000
2012
2000
2012
2000
2012
Quantidade de firmas
58
82
100
67
5
3
Participação no mercado (conjunto de empresas)
11,93
32,17
41,28
10,91
46,79
56,92
Participação máxima (firma)
2,34
2,58
6,10
2,18
13,30
20,52
Participação mínima (firma)
0,0001
0,00005
0,0003
0,00005
6,7
17,58
Participação média (firma)
0,2056
0,392
0,4128
0,162
9,35
18,97
Fonte: ANP (2001-2013).
Elaboração dos autores.
Considerando a máxima e a mínima participação de mercado, percebe-se uma
pequena diferença entre a maior e a menor firma no segmento dominante (máximo
de 20,52% e mínimo de 17,58%). Ao contrário, nos segmentos independente
e regional, há significativas diferenças de porte. Coexistem, neste último nicho,
firmas que movimentam até 50 mil vezes menos combustível que sua concorrente,
dentro de um mesmo espaço comercial. Considerando a importância das economias
de escala no setor (Bicalho e Borges, 2008; Bicalho e Gomes, 2002; Rodrigues e
Saliby, 1998), a principal justificativa para atividades de porte tão diminuído se
relaciona com a possibilidade de integração vertical para pequenas redes de postos
familiares, que acabam por integrar-se, a montante, sob uma nova composição
societária – diferente do que ocorre nos postos varejistas – para se adequar à legislação.
Soma-se a isso o fato de estas pequenas distribuidoras operarem apenas em
mercados locais. Vale ressaltar que embora elas operem com uma escala muito
menor que a de uma empresa média no setor, mesmo as correspondentes menores
participações de mercado garantem a tais firmas o abastecimento em torno de
2% a 5% das frotas veiculares dos estados com menores frotas, o que em verdade
não é de todo desprezível.
A observação dos três nichos competitivos permite, inicialmente, diferenciar
a atuação das firmas no que se refere aos produtos comercializados. No mercado
de etanol, registrou-se, no período de 2000 a 2012, um aumento substancial da
participação de mercado das firmas dominantes (10 pontos percentuais) e independentes
(20 pontos percentuais.), como se mostrou na tabela 6. Ao mesmo tempo, ocorreu
uma proporcional queda nas participações de mercado das firmas que compõem
o nicho regional. Em parte, tal comportamento reflete o movimento de fusões e
aquisições ocorridos no setor, especialmente aquisições de distribuidores regionais
por dominantes, e uma certa migração de distribuidores que deixaram o nicho
regional para operar apenas como distribuidor independente.
A observação desses dados deixa clara a importância das distribuidoras menores
no mercado de etanol. As distribuidoras dominantes acabam se orientando mais
à revenda de derivados de petróleo do que ao mercado de etanol (sem desprezar
o etanol anidro, dada a obrigatoriedade de adição à gasolina). Tal inclinação em
muito se justifica pela atual configuração da produção de etanol, que nem sempre
As Transformações e os Desafios do Encadeamento Produtivo do Etanol no Brasil
|
213
viabiliza a elevada escala requerida pelas distribuidoras dominantes. Ainda que
os grupos de comercialização formados pelas indústrias consigam amenizar esse
cenário, é fato que as independentes ampliam as possibilidades de comercialização,
dando mais estabilidade ao mercado de etanol.
Tal orientação de vendas das distribuidoras é refletida no comportamento
de revenda varejista, que demonstra uma segmentação evidente entre postos de
bandeira branca e postos vinculados. Estudo de Soares (2012), restrito ao estado
São Paulo, indicou que os distribuidores dominantes têm declarada preferência por
negociações com postos vinculados; por outro lado, para as distribuidoras regionais
e independentes, a maioria das negociações é feita com postos de bandeira branca.
Tal dado é confirmado quando se observa o mapa da revenda de etanol no Brasil,
descrito no quadro 2.
QUADRO 2
Mapa da revenda de etanol – Brasil (2010)
Fornecedores
Posto de combustível
BR (3,8%)
Bandeira branca
(48,1% das vendas de combustíveis)
Venda média por posto = 436,3 m³/ano
Ipiranga (3,0%)
Shell (1,0%)
Cosan (1,5%)
Outras (90,7%)
Distribuidores bandeirados (100%)
Vinculados
(51,9% das vendas de combustíveis)
Venda média por posto = 373,34 m³/ano
Fonte: Soares (2012).
De outra parte, quando se estende a análise segundo as bandeiras e não apenas
dividindo os postos entre bandeirados ou de bandeira branca, percebe-se que, em
termos de revenda, de fato, a de etanol está dividida entre os nichos dominante
e independente. Não há, portanto, muita expressividade do nicho regional nas
vendas de etanol, conforme dados da tabela 7.
TABELA 7
Composição nacional das vendas de etanol segundo distribuidores
Bandeira
Vendas anuais
totais (m³/ano)
Composição das vendas
Quantidade
de postos
bandeirados
Média
de venda
bandeirados
(m³/ano)
Bandeira branca
(m³/ano)
Bandeira
branca (%)
Bandeirados
(m³/ano)
Bandeirados
(%)
BR
3.120.318
275.523
8,8
2.844.795
91,2
7.364
386,31
Ipiranga¹
2.457.062
217.518
8,9
2.239.544
91,1
5.110
438,27
Shell
2.034.990
72.506
3,6
1.962.484
96,4
2.367
829,10
Cosan²
753.700
108.759
14,4
644.941
85,6
1.503
429,10
Outros
6.707.930
6.576.289
98,0
131.641
2,0
4.611
28,55
Total
15.074.000
7.250.594
48,1
7.823.406
51,9
20.955
373,34
Fonte: ANP (2010).
Elaboração dos autores.
Notas: ¹ Inclui postos Texaco.
² Inclui postos Esso.
Quarenta Anos de Etanol em Larga Escala no Brasil: desafios, crises e perspectivas
214
|
4.2 Comportamento recente da revenda de etanol
4.2.1 Preços
Observando a segmentação no mercado de etanol, é preciso lembrar que outro
argumento em favor da desregulamentação setorial era também a de redução dos
preços via aumento da concorrência, inclusive com os postos bandeira branca.
A esse respeito, observa-se que as médias de preço praticado nos postos revendedores,
subdivididos por bandeiras, sugerem que os postos de bandeira branca ofereceram
ao mercado uma opção com preços menores do que aqueles praticados por postos
com bandeiras de grandes marcas (tabela 8).
19
TABELA 8
Média de preços de etanol (média anual de 10 litros – anos selecionados, preços correntes)
Tipo de posto
2000
2005
2009
2012
Vinculado – dominantes
8,73
12,23
13,79
18,27
Vinculado – regionais
7,92
11,13
12,73
17,97
Todos os vinculados
8,62
11,95
13,63
18,24
Postos de bandeira branca
7,38
10,63
12,19
17,11
Relação de preços bandeiras (brancas versus vinculados)
-14,4%
-11,0%
-10,6%
-6,2%
Fonte: Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe).
20
Elaboração dos autores.
Observa-se que os preços praticados por postos de bandeira branca são menores
que aqueles preços médios praticados pelos postos associados aos distribuidores.
A destacada vantagem de preços dos postos de “bandeira branca” no segmento de
etanol ressalta uma mudança paralela a outras no setor de combustíveis que foi o
início e o vigoroso aumento na produção de veículos do tipo flex fuel nos últimos
anos, conforme dados do gráfico 5.
GRÁFICO 5
Produção de automóveis e veículos comerciais leves por tipo de combustível (anos selecionados)
49.264
880.941
1.936.931
2.541.153
2.732.060
0
500.000
1.000.000
1.500.000
2.000.000
2.500.000
3.000.000
3.500.000
2000
2003
2005
2007
2009
2012
Flex fuel
Gasolina
Diesel
Etanol
Fonte: Anfavea (2014).
Elaboração dos autores.
19. Não há uma base de dados nacional do comportamento dos preços do etanol no mercado varejista, mas sim a
média aritmética das médias geométricas anuais de preços coletados pela Fipe na cidade de São Paulo.
20. Levantamentos periódicos de preços do etanol na composição do Fipe.
As Transformações e os Desafios do Encadeamento Produtivo do Etanol no Brasil
|
215
O início da produção desse tipo de automóvel, em 2003, alterou a matriz
energética no segmento distribuidor, dando ao consumidor a possibilidade de
migrar entre o biocombustível e a gasolina em função da relação de preços entre
esses dois produtos. A alteração na indústria automotiva deu margem à ampliação
de um movimento competitivo não apenas entre os segmentos de revenda (postos
de combustíveis vinculados e de bandeira branca), mas também entre os segmentos
produtores de etanol e de gasolina, que passaram a ser substitutos perfeitos,
respeitada a relação entre preços, em torno de 70%.
21
A variação entre os preços relativos desses dois combustíveis, combinada com
a expansão incentivada da oferta, provocou uma mudança no padrão de consumo,
evidenciada pela alteração no padrão de demanda entre os anos de 2000 e 2012.
Dados da tabela 9 demonstram a acelerada expansão no consumo de etanol até
2009 e recuo desde então. Nota-se a expressiva queda em 2011, quando se atingiu
o pico na alta dos preços deste combustível, com redução da oferta, em termos
percentuais, ao todo do ciclo Otto.
TABELA 9
Evolução do consumo de etanol hidratado e de gasolina no Brasil (2000-2012)
Ano
Consumo de
etanol hidratado
(em mil m³) (A)
Variação em
relação ao ano
anterior (%)
Consumo de gasolina
(em mil m³) (B)
Variação em
relação ao ano
anterior (%)
Consumo no ciclo
Otto (em mil m³)
(A) + (B)
Variação em
relação ao ano
anterior (%)
2000
4.603,59
–
22.630,19
–
27.233,78
–
2001
3.501,99
-23,93
22.211,00
-1,85
25.173,00
-5,58
2002
3.791,88
8,28
22.610,26
1,80
26.402,14
2,68
2003
3.245,32
-14,41
21.790,65
-3,62
25.035,97
-5,17
2004
4.512,93
39,06
23.173,88
6,35
27.686,80
10,59
2005
4.667,22
3,42
23.553,49
1,64
28.220,71
1,93
2006
6.186,55
32,55
24.007,63
1,93
30.194,19
6,99
2007
9.366,84
51,41
24.325,45
1,32
33.692,28
11,59
2008
13.290,10
41,88
25.174,78
3,49
38.464,88
14,17
2009
16.470,95
23,93
25.409,09
0,93
41.880,04
8,88
2010
15.074,30
-8,48
29.843,66
17,45
44.917,97
7,25
2011
10.899,22
-27,70
35.491,26
18,92
46.390,48
3,28
2012
9.850,18
-9,62
39.697,71
11,85
49.547,90
6,81
Fonte: ANP (2013).
Uma vez que a expressiva pressão de demanda sobre os combustíveis nos últimos
quinze anos não foi suprida por correspondente aumento de oferta doméstica, o
consumo de gasolina tem sido suprido, desde 2010, pelas importações, em razão da
limitação de ampliação, no curto prazo, no parque de refino nacional, relevando um
gargalo upstream na indústria de petróleo. No caso do etanol, a retração na parcela
21. Considerando-se a menor eficiência energética do etanol, é recomendado, de forma geral, seu uso sempre que
o preço de compra for de até 70% do preço da gasolina – este percentual pode variar com a marca e o modelo do
automóvel, ou ainda com o percentual de etanol hidratado adicionado à gasolina.
Quarenta Anos de Etanol em Larga Escala no Brasil: desafios, crises e perspectivas
216
|
do consumo refletiu a resposta do consumidor ao aumento de preços verificado num
momento de restrição de oferta. Os preços do etanol combustível historicamente
apresentam maior variabilidade em todos os segmentos (produção, distribuição e
revenda) comparativamente à gasolina devido às alterações nas condições de oferta,
marcadas pelos períodos de safra e entressafra da cana-de-açúcar, e à concorrência
gerada pelo mercado de açúcar, especialmente quando ocorre elevação de seus preços
no mercado internacional e também do nível de preços da gasolina (ANP, 2013).
4.2.2 Qualidade
Outro aspecto importante que afeta significativamente o segmento revendedor de
etanol é a questão da qualidade. Considerando a concorrência que os postos
de bandeira branca têm oferecido aos postos vinculados, com preços mais atrativos,
é fato que o setor ainda convive com elevadas desconfianças do consumidor, de
acordo com Soares, Paulillo e Candolo (2013) e Soares e Paulillo (2011).
Problemas na produção e/ou armazenamento podem provocar alteração do
pH e da condutividade do etanol, que são as duas outras inconformidades mais
recorrentes no país. A diferença de condutividade também se relaciona com a
existência do “etanol molhado”. A condutividade do etanol hidratado regular é
baixa, não podendo exceder a 350 µS/m (microsimens por metro), de acordo com
especificações da ANP (2011), enquanto a condutividade do etanol irregular,
“hidratado” com água não destilada, apresenta alta condutividade elétrica, chegando
a mais de 2.000µS/m.
Para o consumidor, as principais consequências da presença de combustíveis
adulterados e/ou não conformes nos motores são resíduos em bicos injetores e
válvulas; perda de potência; aumento de consumo; resíduos sobre as velas de ignição;
resíduos na câmara de combustão e batida de pinos. Por esse motivo, o número de
amostras coletadas praticamente dobrou entre os anos de 2003 e 2010 no Brasil.
Foram 133.592 amostras em 2003 e 265.046 amostras em 2010 (Soares, 2012).
Ressalta-se que, nos combustíveis derivados de petróleo, as irregularidades são
menos comuns que no mercado de etanol, por ser a primeira uma cadeia logística
muito mais integrada e menos suscetível à manipulação direta (Soares, 2012).
Para o etanol, a causa de maior incidência de não conformidade está no teor alcoólico
(gráfico 6). Esse indicador detecta a adição de água no combustível e responde
entre 31% e 61% das ocorrências de não conformidade. É expressiva a queda nos
índices de não conformidade nos últimos anos devido ao aumento da fiscalização.
As Transformações e os Desafios do Encadeamento Produtivo do Etanol no Brasil
|
217
GRÁFICO 6
Especificação da não conformidade do etanol no Brasil¹ (2002-2011)
(Em %)
38
43
34
51
54
37
42
61
58
31
7
22
18
10
8
6
7
13
7
13
33
27
39
30
29
22
18
10
6
9
22
8
9
8
8
34
34
16
29
47
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
Teor alcóolico
Condutividade
pH
Outros (cor, aspecto)
Fonte: ANP (2002-2011).
Nota: ¹ Dados mensais de dezembro de cada ano.
A não conformidade no teor alcóolico, que reduz o desempenho dos veículos,
pode ser decorrente tanto da adulteração do etanol anidro por adição inadequada de
água – processo de adulteração deliberada – quanto por manuseio inadequado, que
pode contaminar o etanol hidratado com água. A adição de água ao etanol anidro,
para produção do que se chama “etanol molhado”, é empregada para aumento
fraudulento de lucros e sonegação de impostos (notadamente, o Imposto sobre
Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de
Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS), uma vez
que a fiscalização sobre a comercialização do etanol anidro é mais vulnerável que
a existente para etanol hidratado (Brasil, 2007).
22
Quando comparados os dados de não conformidade segundo as bandeiras dos
postos em que as amostras foram coletadas, os percentuais revelaram-se maiores
naqueles de bandeira branca, seguidos dos vinculados regionais e, com menor índice
de não conformidades, os postos vinculados dominantes (tabela 10).
22. Segundo o Ministério Público de São Paulo, a diferença na fiscalização está no recolhimento de ICMS, em que, no
caso do etanol hidratado, a obrigação do recolhimento se dá na usina, com retenção do tributo na fatura da nota fiscal,
enquanto que o etanol anidro tem tributação diferida, ou seja, o recolhimento somente ocorre quando da venda do
produto pela distribuidora aos postos de combustível. Por esta razão, a Resolução ANP n
o
36/2007 determinou a adição
de corante laranja ao etanol anidro licenciado, já que o etanol hidratado deve ser incolor.
Quarenta Anos de Etanol em Larga Escala no Brasil: desafios, crises e perspectivas
218
|
TABELA 10
Índice de não conformidade do etanol (2003-2011)
(Em %)
¹
Bandeira
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
BR
7,2
4,8
3,8
2,3
2,3
2,0
1,2
2,1
2,1
Ipiranga²
6,4
3,9
3,4
1,9
1,8
1,3
0,9
1,7
0,8
Shell
5,7
3,8
3,7
1,7
2,5
1,0
0,5
1,7
1,1
Cosan³
7,0
5,2
3,7
2,1
2,2
1,4
1,1
1,5
1,9
Dominante
6,7
4,4
3,6
2,0
2,1
1,5
1,0
1,9
1,6
Regional
8,5
8,7
7,2
3,5
3,7
3,0
1,9
2,4
2,4
Branca
12,8
10,6
10,6
4,8
4,7
3,2
2,5
2,6
3,0
Total
9,2
7,6
6,9
3,2
3,3
2,3
1,7
2,2
2,3
Fonte: ANP (2002-2011).
Elaboração dos autores.
Notas: ¹ Sobre o total de amostras coletadas segundo bandeiras.
² Inclui postos Texaco.
³ Inclui postos Esso.
Os dados demonstram quedas expressivas nos índices de não conformidade no
período analisado. Contudo, a existência de índices absolutamente inaceitáveis para
os anos 2000 converge com a persistência da desconfiança do consumidor quanto
à qualidade do etanol na revenda. Acredita-se que o aumento da concentração
da distribuição somado ao aumento da fiscalização e de instrumentos coercitivos
isntituídos por normas da ANP nos últimos anos têm contribuído para a melhora
na qualidade do etanol na revenda varejista.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este capítulo destacou as características e os desafios das etapas e elos da cadeia
produtiva canavieira. Procurou-se evidenciar que, além de períodos de intensa
regulação estatal, que se intercalam com outros de quase ausência do Estado, há
também uma forte participação de organizações privadas no desenho setorial,
principalmente a partir da década de 1990. Alterações nas forças e arranjos
institucionais que compõem os elos agricultura-indústria, indústria-distribuição
e distribuição-revenda de varejo são, como visto ao longo do texto, frequentes e
instáveis nessa atividade.
Tanto as relações entre fornecedores de cana-de-açúcar e usinas quanto entre
estas e a distribuição evoluíram para formas mais profissionalizadas em relação ao
período de presença regulatória mais forte do Estado. Isso se nota, por exemplo,
nos contratos de fornecimento, colheita e assistência técnica, além de acordos para
precificação de matéria-prima, por meio da intermediação das partes dentro do
Consecana. Contudo, apesar dessa evolução, ainda há pontos de confronto nesse
elo, como no caso da reivindicação de remuneração aos fornecedores pelo bagaço
da cana utilizado para geração de energia das usinas, ou mesmo no reconhecimento
da diversidade produtiva, que exige flexibilidade nos contratos.
As Transformações e os Desafios do Encadeamento Produtivo do Etanol no Brasil
|
219
Entre os entraves à maior eficiência na atividade de campo, no exemplo do
estado de São Paulo, está o fato de que os campos de produção de cana-de-açúcar
são relativamente pequenos – assemelhando-se, guardadas as proporções, na região
Nordeste. Esse aspecto dificulta a otimização no deslocamento do maquinário de
corte, de carregamento e de transporte, reduzindo os limites alcançáveis de produtividade.
Ademais, a prática do plantio de variedades adequadas pelos fornecedores
ainda não é amplamente adotada, em parte porque os agricultores não conhecem
amplamente os resultados das diferentes variedades ou por estarem acostumados
com as já utilizadas, o que gera resistência na adoção de melhores tecnologias.
O processo de incorporação de unidades independentes, em dificuldades nesta
crise, por parte de grupos industriais de maior porte, não retirou a característica de
produção pulverizada em grande número de indústrias. As indústrias têm exercido
seu papel de liderança de toda a cadeia produtiva, inclusive com iniciativas de criação
de estruturas de comercialização, infraestrutura e transporte que favoreçam sua
posição ante os desafios da cadeia produtiva. Foram listados os exemplos de criação
da Unica, do Consecana, de associações, cooperativas e empresas distribuidoras, de
modo a fortalecer sua condição de comercialização e busca por melhores margens.
Quanto ao elo indústrias-distribuidoras, apesar das tentativas e das medidas
de apoio estatal, barreiras persistem, principalmente ligadas às dificuldades de
aumento e até mesmo de manutenção de margens dos segmentos para trás dos
distribuidores na cadeia produtiva. Registra uma concentração no segmento de
distribuição (também aprofundada por fusões e aquisições). Para fazer frente ao
poder das grandes distribuidoras, as indústrias produtoras de etanol consolidaram
a estratégia de formação de grupos de comercialização, cujos ganhos extrapolam
aqueles da entrega para as distribuidoras. Essa alternativa também tem permitido
às indústrias maior racionalidade econômica e acesso a serviços complementares.
Apesar de as políticas públicas de fins da década de 1990 terem como objetivo
principal o aumento da competição no mercado de etanol, o que se percebeu foi uma
maior concentração na produção e na distribuição. Embora os anos 2000 tenham
experimentado elevação na produção e consumo de etanol, na década seguinte tal
tendência não se sustentou. Nos últimos anos, a demanda crescente por meio da
expansão da frota de automóveis, influenciada também pelas políticas favoráveis
de crédito, contrastou com a oferta inelástica de curto prazo, resultando em alta de
preços. Conforme detalhado no texto, os efeitos da política pública que objetivou
o aumento da competição com vistas à redução de preços não aconteceram como
previsto. Em outras palavras, as políticas não surtiram os efeitos esperados, em parte,
porque a entrada experimentada no segmento de distribuição foi de empresas de
pequeno porte e, se há aumento no número de competidores do mercado, isso se
deu apenas na franja competitiva acessível, qual seja, o segmento independente.
Quarenta Anos de Etanol em Larga Escala no Brasil: desafios, crises e perspectivas
220
|
Nos demais seguimentos da distribuição, ocorreu aumento da concentração e
redução da competição. Assim, um problema a ser resolvido no setor é o equilíbrio
entre a oferta industrial e a demanda final, de modo a reduzir as flutuações de
preços e estabilizá-los em um patamar que seja, ao mesmo tempo, vantajoso ao
consumidor e que tornem viáveis novos investimentos.
Outro aspecto que também contribuiria para maior estabilidade de preços e
dinamismo na oferta e estoques é a reestruturação e viabilização do mercado futuro
de etanol. Contudo, fortalecer os estoques reguladores e estabelecer uma coordenação
que defina e estimule o papel de cada um dos atores ainda é um desafio.
Tais desafios foram ainda mais aguçados com os efeitos nocivos do baixo investimento
no setor, potencializados pela política pública de controle dos preços da gasolina.
Tal medida gerou certa desvantagem competitiva do etanol.
A última parte do trabalho apontou que a instabilidade institucional
pós-desregulamentação contribuiu para a percepção de que as irregularidades
(na qualidade do etanol ao consumidor) eram comuns neste mercado.
Também se notou que o segmento de bandeiras brancas era mais suscetível a tais
eventos, brecha que permitiu às grandes distribuidoras desfrutarem de certa
diferenciação de produtos e da manutenção de markups permanentes.
Por fim, cabe observar que o advento de novas tecnologias é tido como maior
expectativa do principal elo do setor, o agrícola-industrial. Apesar de haver sinais
de atrasos na pesquisa e desenvolvimento (P&D) no Brasil, inclusive em relação a
patentes, por exemplo, sobre a quebra da lignocelulose para o etanol de segunda geração.
Além de demandar quantidade menor de terras, facilitando as interações
nesse elo da cadeia produtiva, o expressivo ganho de produtividade esperado com
essa tecnologia pode trazer um alento ao segmento industrial. Neste momento,
entretanto, a viabilidade desta tecnologia depende de investimentos em pesquisas,
cultivos e adaptações das plantas industriais, em um momento em que as fontes
de financiamento para tal são escassas, seja pela baixa capitalização de um grande
grupo de indústrias processadoras de cana, seja pelo mau momento da economia.
REFERÊNCIAS
ANFAVEA – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS FABRICANTES DE VEÍCULOS
AUTOMOTORES. Anuário da Indústria Automobilística Brasileira 2014.
São Paulo: Anfavea, 2014.
ANP – AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÓLEO, GÁS NATURAL E
BIOCOMBUSTÍVEIS. Anuário estatístico brasileiro do petróleo, do gás natural
e biocombustíveis 2013
. Rio de Janeiro: ANP, 2000-2013. Disponível em:
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